Caríssimas e caríssimos,
Como vimos há alguns meses, ao ser aprovada no concurso do Itamaraty e tornar-se a primeira mulher diplomata do Brasil, em 1918, Maria José de Castro Rebello Mendes abriu caminho para a presença feminina no funcionalismo público federal e inspirou o ingresso de outras mulheres na carreira diplomática. Uma delas foi Odette de Carvalho e Souza, que, mais tarde, ocuparia o lugar de primeira embaixadora brasileira, chefiando o então Departamento Político do Ministério das Relações Exteriores (MRE), de 1956 a 1959.
Por esse notável motivo, Odette de Carvalho é a baronesa cuja trajetória e atuação relembramos este mês aqui no blog. Para tanto, trazemos a fantástica apresentação do diplomata Guilherme José Roeder Friaça* sobre a vida e a carreira desta personagem que marcou a história da diplomacia brasileira!
A PRIMEIRA EMBAIXADORA: A TRAJETÓRIA DE ODETTE DE CARVALHO E SOUZA
Desde o mês de janeiro de 1956, o Itamaraty convivia com a primeira mulher promovida a ministra de primeira classe: Odette de Carvalho e Souza. A primeira embaixadora do Itamaraty e primeira embaixadora de carreira do mundo (LINTZ, 1983), tinha então 52 anos e ficou conhecida no MRE como Dona Odette, uma abordagem sexista, já que, nas referências a todos os homens, seus nomes eram sempre precedidos do título hierárquico. Se aos ministros de primeira classe se dava, em geral, o tratamento de embaixador, as referências à embaixadora Odette de Carvalho e Souza seguiram sendo como Dona Odette até sua morte. “As mulheres não têm sobrenome, têm apenas um nome. Aparecem sem nitidez, na penumbra dos quartos obscuros” (PERROT, 2007, p. 17).
Odette de Carvalho e Souza, que integrava o “Grupo das 20” [diplomatas pioneiras: 19 mulheres admitidas até a proibição de acesso ao sexo feminino, em 1938, e Maria José Monteiro de Carvalho, transferida para carreira diplomática em 1945], ingressou no Itamaraty em 13 de fevereiro de 1936, aprovada em concurso de títulos. Nascida no Rio de Janeiro em 1º de outubro de 1904, filha de Augusta Possas de Carvalho e Souza e Carlos de Carvalho e Souza, Odette de Carvalho e Souza chegou ao topo da carreira um mês antes de completar 20 anos de serviço. Seu pai era membro da carreira consular, de modo que ela travara contato com as atividades do Itamaraty desde muito jovem. Ademais, já tinha experiência no campo internacional quando foi nomeada cônsul de terceira classe, cargo inicial das carreiras consular e diplomática. Havia sido conselheira técnica governamental das XV, XVI e XVII Conferências Internacionais do Trabalho, realizadas em Genebra nos anos de 1931, 1932 e 1933 e arquivista da Delegação Brasileira à Conferência do Desarmamento de 1932, na mesma cidade.
Na primeira gestão do ministro José Carlos de Macedo Soares no MRE (jul. 1934 a nov. 1936), exerceu as funções de sua secretária, de julho de 1934 até a data da posse dela na carreira. Durante esse tempo produziu vários textos, sob encomenda do chanceler, nos quais já demonstrava o anticomunismo ferrenho que a caracterizaria. Em um ano e meio produziu cerca de 500 páginas, em sete ensaios sobre temas diversos: em 1934, “O comercio exterior entre o Brasil e URSS” e “Os soviets e a América Latina”; no ano seguinte, “A repartição internacional dos vinhos e seus fins”, “Ordem do dia da Conferencia Commercial Panamericana e respectivos projetos de convenção e recomendação”, “A unificação de estatisticas officiaes e as estatisticas de migração”, “O Conflito ítalo-ethiope” e “A infiltração comunista nas classes armadas”. Possivelmente por ser de confiança do ministro Macedo Soares, foi indicada, em janeiro de 1936, ainda antes de ingressar na carreira, para chefiar os Serviços Especiais de Informação do MRE.
Segundo Negrão (2005), os Serviços chefiados por Odette de Carvalho e Souza por cerca de um ano nada mais eram, em caráter experimental, que os Serviços de Estudos e Investigações (SEI), criados por Decreto de 1º de fevereiro de 1937 e, a partir de novembro de 1937 até março de 1939, novamente dirigidos por Odette de Carvalho e Souza. Negrão (2005) afirma ainda que os SEI do MRE funcionaram como órgãos secretos auxiliares da repressão varguista, atendendo à política governamental anticomunista. Sobre Odette de Carvalho e Souza, o autor afirma que todos os documentos sobre os SEI a que teve acesso eram por ela firmados, o que permitiria classificá-la como assídua colaboradora do Governo no combate ao comunismo. O autor tece comentários que enriquecem o perfil da diplomata:
Na reunião dos delegados de Polícias Estaduais, a sua posição como representante do MRE é destacada, aparecendo como uma das responsáveis pela elaboração das normas a serem adotadas pela polícia política. Nos documentos referentes aos SEI, Odette de Carvalho e Souza enumera, mais uma vez, os relevantes serviços prestados no combate ao comunismo internacional e propõe que esse órgão funcione diretamente ligado ao MRE, sendo o seu funcionário considerado adido nas embaixadas (NEGRÃO, 2005, p. 160).
Com efeito, o Almanaque do Pessoal de 1939 indica que a diplomata foi a representante do Itamaraty no 1º Congresso dos Chefes de Polícia, realizado no Rio de Janeiro em outubro de 1936. Odette de Carvalho e Souza permaneceu à frente dos SEI até o começo de 1939, quando foi removida para a Embaixada em Londres. No entanto, a nomeação foi tornada sem efeito e seu destino passou a ser a Legação do Brasil em Berna. Os motivos para essa decisão foram expressos em carta que encaminhava Decretos de remoção ao presidente Getúlio Vargas:
Quanto à Senhora Odette de Carvalho e Souza, fôra designada para servir na Embaixada em Londres, mas o Embaixador Régis de Oliveira comunicou que ao Govêrno de Sua Majestade Britânica não agradaria a nomeação de uma mulher para cargo diplomático, razão pela qual proponho enviá-la para a Suíça, tornando sem efeito a designação anterior.
Odette de Carvalho e Souza esteve em Berna de abril de 1939 a junho de 1946. Em dezembro de 1945, foi promovida a primeira-secretária. De regresso ao Brasil, ficou à disposição da Interventoria Federal de São Paulo até dezembro de 1946, quando assumiu a função de auxiliar de Gabinete do chanceler Raul Fernandes. Entre 1947 e 1948, foi representante do MRE na Comissão Organizadora do Congresso Panamericano de Serviço Social (julho/1947); secretária da Delegação do Brasil à Conferência Interamericana Para a Manutenção da Paz e da Segurança no Continente (agosto/1947); membro da Comissão encarregada de preparar os elementos de estudo dos temas constantes do programa na 9ª Conferência Internacional Americana (outubro/1947) e secretária da Delegação do Brasil à 3a Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas (setembro/1948). Em novembro de 1949, recebeu o título de conselheira e em maio de 1950 foi promovida a ministra de segunda classe.
No dia 2 de abril de 1951, assumiu a função de cônsul-geral em Lisboa, de onde partiu em 15 de março de 1956. Havia sido promovida a ministra de primeira classe em 16 de janeiro daquele ano, o que mereceu destaque de vários jornais portugueses, em notícias publicadas no mesmo dia em que foi oficializada a promoção. O Diário de Lisboa, por exemplo, mostrava retrato de Odette de Carvalho e Souza, sob o qual estava impressa a seguinte legenda: “Pela primeira vez na história da diplomacia brasileira uma senhora (a Cônsul-geral em Lisboa) é elevada a ministro plenipotenciário”. Também o Diário de Notícias e o Diário da Manhã daquele dia mencionavam a promoção da cônsul-geral do Brasil. Sua partida foi igualmente noticiada e as despedidas que tiveram lugar naquela ocasião tiveram destaque em diversos periódicos lisboetas.
Regressou, em abril de 1956, à Secretaria de Estado, onde seria mais uma vez colaboradora direta de José Carlos de Macedo Soares, em sua segunda gestão como titular da pasta das Relações Exteriores (novembro/1955 a julho/1958). Tão logo chegou ao Rio de Janeiro, assumiu a chefia interina do Departamento Político e Cultural. Foi a primeira mulher a ocupar cargo tão alto na Casa. O MRE estava então dividido em três departamentos e o Departamento a cargo de Odette de Carvalho e Souza reunia cinco divisões: Política; Cultural; do Cerimonial; de Fronteira e de Atos, Congressos e Conferências Internacionais. Embora o cenário mundial se tenha complexificado e as atribuições a que tem que fazer face o Itamaraty sejam maiores e mais diversificadas, a posição ocupada por Odette de Carvalho e Souza corresponderia, no MRE de hoje, à chefia conjunta de pelo menos quatro Subsecretarias-gerais.
Odette de Carvalho e Souza ficou à frente do Departamento até o fim da gestão de Macedo Soares, em 4 de julho de 1958. Foi sucedida por Manoel Pio Corrêa que lhe dedicou, em suas memórias, dois parágrafos. Se, por um lado, ajudam a compor o retrato dessa mulher, por outro, trazem em si o preconceito de que deve a mulher forçosamente aliar beleza física à inteligência e à competência profissional:
“Dona Odette” não fora agraciada pela Natureza com dotes físicos correspondentes aos seus grandes dotes intelectuais. Sob uma cabeleira postiça extremamente inconvincente diziam-na calva como um joelho, e, quanto ao resto, não possuía sobrancelhas nem pestanas, o que lhe dava um aspecto incomodamente inexpressivo. Sob esse aspecto ingrato e mesmo dolorosamente caricato abrigava-se uma inteligência clara, uma grande cultura profissional, uma grande bondade e um invejável sentido de humor (CORRÊA, 1994, p. 151).
Em março de 1959, a primeira embaixadora brasileira deu sequência a uma sucessão de atos pioneiros. No âmbito bilateral, esteve à frente da Embaixada em Tel Aviv de 1 de maio de 1959 a 6 de agosto de 1961. Foi a terceira representante brasileira naquele Posto, de criação recente. De lá partiu para assumir a Embaixada em São José, onde permaneceu de 5 de outubro de 1961 a 14 de outubro de 1964. Em 9 de dezembro de 1964, foi designada para chefiar a Delegação do Brasil junto às Comunidades Econômicas Europeias (CEE), em Bruxelas. Chegou ao Posto em 16 de janeiro de 1965, lá permanecendo até sua remoção para a Secretaria de Estado, no segundo semestre de 1969. Nas três capitais, foi a primeira brasileira a ocupar o posto.
Odette de Carvalho e Souza, quando avaliada no “Grupo das 20”, foi a diplomata que mais funções de relevo desempenhou. Conforme indicado, das 19 mulheres que lhe foram contemporâneas, somente outras duas, Dora de Alencar Vasconcellos, em 1964, e Lourdes de Vincenzi, em 1972, chegaram a embaixadoras. Observe-se que Beata Vettori e Margarida Guedes Nogueira, aposentadas como ministras de segunda classe, tiveram o título de embaixadora, mas não chegaram a ministras de primeira classe. Odette de Carvalho e Souza foi aposentada no dia 2 de outubro de 1969, por ter completado 65 anos de idade. Faleceu no ano seguinte, aos 66 anos de idade, na cidade do Porto, Portugal, no dia 30 de novembro.
* FRIAÇA, Guilherme. Mulheres diplomatas no Itamaraty (1918-2011): uma análise de trajetórias, vitórias e desafios (Tese do Curso de Altos Estados (CAE)). Brasília: Instituto Rio Branco, 2012.