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Baronesa do Mês: Bertha Lutz

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Caras pupilas e caros pupilos,

Atualmente, a Organização das Nações Unidas (ONU) possui uma agenda bem definida e desenvolvida no que diz respeito às questões de igualdade de gênero ao redor do mundo. Esse é, inclusive, um dos elementos que compõem a Agenda 2030 e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, adotados na ocasião da Cúpula das Nações Unidas em 2015. O que nem todos sabem, porém, é como e quando esse assunto começou a ser discutido no âmbito da instituição.

E se eu dissesse a vocês que uma das principais responsáveis pela inclusão das temáticas de gênero na ONU foi uma brasileira? Isso mesmo, meus caros! A cientista e diplomata Bertha Lutz representou o Brasil na Conferência de São Francisco – reunião que originou as Nações Unidas –, em 1945, e, com a ajuda de outras delegadas latino-americanas, reivindicou e garantiu a inclusão da defesa dos direitos das mulheres na Carta da ONU e a criação de um órgão intergovernamental para a promoção da igualdade de gênero.

Por esse motivo ilustre e importantíssimo, Bertha é a nossa grande homenageada do mês! Conheçam mais sobre suas admiráveis história e carreira a seguir.

 

bertha_jovemFilha da enfermeira inglesa Amy Fowler Lutz e do cientista e médico Adolfo Lutz, Berta Maria Júlia Lutz nasceu em São Paulo em 2 de agosto de 1894 e foi educada formalmente na Europa, graduando-se em Ciências Naturais na Faculdade de Ciências da Universidade de Paris (Sorbonne). Durante o tempo que passou em terras europeias, ela pôde conhecer de perto o movimento feminista e a campanha sufragista que ganhava espaço na Inglaterra. Essa experiência foi determinante para que, mais tarde, ela começasse sua militância em defesa da liberdade das mulheres e da igualdade de gênero.

Em 1918, Bertha retornou ao Brasil e começou a trabalhar como auxiliar de seu pai e tradutora do Instituto Oswaldo Cruz. Prestou concurso para o cargo de secretária do Museu Nacional, passou em primeiro lugar e foi nomeada por decreto, tornando-se a segunda mulher a ocupar um cargo público no país, em 1919. Posteriormente, a cientista foi designada pelo diretor do Museu Nacional para auxiliar os trabalhos da Seção de Botânica. Após a morte de seu pai, em 1940, ela deu continuidade às pesquisas por ele desenvolvidas, e qualificou-se como zoóloga especialista em hylas neotropicais. Bertha também se preocupou com os assuntos ambientais e com o patrimônio natural e cultural brasileiro, participando como conselheira do Conselho Federal Florestal e do Conselho Federal de Expedições Artísticas e Científicas.

Ao mesmo tempo em que desempenhava excelente trabalho nas ciências biológicas, Bertha travou uma luta admirável pelos direitos políticos e sociais das mulheres no Brasil e no mundo. Sua militância tinha diversos objetivos, sendo o direito do voto e a emancipação da mulher os principais deles. Em 1919, criou a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher e, três anos depois, organizou o I Congresso Internacional Feminista no Rio de Janeiro, consolidando a criação da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF), na qual foi presidente e presidente de honra vitalícia posteriormente. A atuação política dessa instituição foi fundamental para a conquista do direito de voto feminino no país, por meio do decreto-lei do presidente Getúlio Vargas, em 1932.

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I Congresso Internacional Feminista no Rio de Janeiro, 1922. Fonte: Arquivo Nacional.

A cientista também teve participação na fundação da União Universitária Feminina, em 1929, e da Liga Eleitoral Independente em 1932. No ano seguinte, criou a União Profissional Feminina e a União das Funcionárias Públicas. Ainda em 1933, Bertha candidatou-se a uma vaga na Assembleia Nacional Constituinte de 1934, pelo Partido Autonomista do Distrito Federal, mas não conseguiu se eleger. Obteve, porém, a primeira suplência no pleito seguinte e acabou assumindo o mandato de Deputada Federal em julho de 1936, devido à morte do titular, Cândido Pessoa. Como parlamentar, priorizou as propostas de reformulação das leis referentes ao trabalho da mulher e do menor, objetivando a igualdade salarial, a licença de três meses para a gestante e a redução da jornada de trabalho de 13 horas diárias. Sua atuação legislativa perdurou somente até novembro de 1937 devido à decretação do Estado Novo. Todavia, ela se manteve fiel à luta das mulheres pela cidadania nas décadas seguintes.

Buscando se aprofundar nas questões legais dos direitos da mulher, formou-se em Direito pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro (1933). Em seguida, escreveu a obra “A Nacionalidade da Mulher Casada”, onde analisou juridicamente o assunto e apresentou ideias para a solução do problema das mulheres de outros países – as brasileiras não eram submetidas a essa regra – que se viam obrigadas a adotar a nacionalidade do marido se ele fosse estrangeiro.

Como bem registrou o pesquisador Guilherme Gantois, Bertha Lutz tinha grande interesse nos movimentos feministas que estavam ocorrendo nos diversos lugares do planeta e, além do continente americano, mantinha contato com movimentos e organizações da Europa e da Ásia, o que lhe dava amplo conhecimento da situação das mulheres em vários lugares do mundo. Ademais, ela representou o Brasil em reuniões e assembleias internacionais pela causa da emancipação política e social feminina, defendendo especialmente o direito de igualdade no trabalho para homens e mulheres.

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IX Congresso da Aliança Internacional pelo Sufrágio Feminino, 1923. Fonte: Arquivo Nacional.

A ativista participou de diversos eventos e atividades internacionais de grande importância, dentre os quais: o Conselho Feminino Internacional (1919), órgão da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – onde foram aprovados os princípios de salário igual para ambos os sexos e a inclusão da mulher no serviço de proteção aos trabalhadores; a Assembleia-Geral da Liga das Mulheres Eleitoras nos Estados Unidos (1922), na qual foi eleita vice-presidente da Sociedade Pan-Americana; o IX Congresso da Aliança Internacional pelo Sufrágio Feminino em Roma (1923); a Conferência Internacional da Mulher em Berlim (1929); a Conferência Internacional do Trabalho nos EUA (1944), como membro da Comissão de Assuntos Femininos; a Conferência de São Francisco (1945), na função de delegada plenipotenciária; a Comissão de Estatutos da Mulher das Nações Unidas (1952), criada por sua iniciativa, e a Comissão Interamericana de Mulheres (1953), órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA), nos postos de delegada e vice-presidente até 1959.

Além disso, Bertha foi membro de inúmeras entidades internacionais. Tais como: a Aliança Internacional pelo Sufrágio Feminino e Igualdade Política dos Sexos (Londres), a Sociedade Internacional de Mulheres Geógrafas (Washington), a Comissão Feminina Consultiva do Trabalho da Mulher, do Bureau Internacional do Trabalho, da Sociedade das Nações (Genebra), o Bureau Internacional de Proteção à Natureza (Bruxelas) e o Museu Americano de História Natural (Nova York).

 

O papel decisivo de Bertha Lutz na Conferência de São Francisco

No final de 2016, a ONU divulgou uma pesquisa reveladora sobre a atuação da diplomata brasileira na Conferência de São Francisco, na qual foi redigida a Carta das Nações Unidas, o documento que originou a Organização mundial em 1945. Bertha Lutz foi a única mulher a integrar a delegação do Brasil ao evento e, na ocasião, procurou impulsionar a igualdade entre homens e mulheres não apenas na agenda da instituição, mas também princípio universal. Graças à insistência das representantes latino-americanas presentes na Conferência, lideradas por Bertha, a Carta foi um dos primeiros tratados internacionais a mencionar em seu texto a necessidade de igualdade de direitos entre os gêneros.

O estudo também revelou que as latino-americanas enfrentaram forte oposição de diplomatas norte-americanas e britânicas. Durante os debates, a estadunidense Virginia Gildersleeve afirmou que as mulheres já estavam “bem estabelecidas” e a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres já era realidade nos EUA. Lutz, por sua vez, respondeu que “em nenhum lugar do mundo, havia igualdade completa de direitos com os homens”, e que havia sido encarregada pelo governo Getúlio Vargas de defender justamente esse ponto na Carta da ONU.

Apenas três por cento dos 160 participantes da Conferência eram mulheres, e quatro delas assinaram a Carta da ONU: Bertha Lutz (Brasil), Wu Yi-fang (China), Minerva Bernardino (República Dominicana) e Virginia Gildersleeve (EUA). Todavia, somente Lutz e Bernardino defenderam abertamente os direitos das mulheres. “As delegadas latino-americanas eram as mais progressistas, suas posições foram determinantes para estabelecer o primeiro acordo internacional a declarar os direitos das mulheres como parte dos direitos humanos fundamentais”, observaram as pesquisadoras responsáveis pelo estudo.

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Bertha Lutz representando o Brasil na Conferência de São Francisco, 1945. Fonte: Nações Unidas.

As principais contribuições de Bertha e outras diplomatas latino-americanas para o documento estão contidas nos seguintes pontos:

  • o preâmbulo da Carta, que cita a igualdade de direito de homens e mulheres – Lutz fez questão de incluir a palavra “mulher” no texto, mesmo com colegas defendendo, na ocasião, que o trecho “direitos humanos para os homens” seria suficientemente inclusivo;
  • o Artigo 1, que prevê como função da ONU “promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião” – esse último princípio é reiterado quatro vezes em diferentes trechos da Carta;
  • o Artigo 8, segundo o qual “as Nações Unidas não farão restrições quanto à elegibilidade de homens e mulheres destinados a participar em qualquer caráter e em condições de igualdade em seus órgãos principais e subsidiários”.

Ao término da Conferência, a diplomata brasileira elaborou um relatório oficial sobre a participação feminina no evento, registrando as observações que fizera durante as reuniões e as conclusões a respeito das posições dos delegados e das expectativas brasileiras sobre os próximos passos para a efetivação da igualdade entre homens e mulheres no âmbito geral da ONU.

Em novembro de 2016, a ONU Brasil publicou um vídeo sintetizando a fundamental participação de Bertha na Conferência de São Francisco:

 

Após sua destacada atuação na conferência originária da ONU, Lutz ganhou ainda mais reconhecimento nacional e mundial. Em 1946, recebeu um prêmio de viagem aos Estados Unidos e lá colaborou com o Clube Soroptimista, sendo considerada a Mulher do Ano. Foi também premiada com o título de Mulher das Américas em 1951 e, no ano seguinte, representou o Brasil na Comissão de Estatutos da Mulher das Nações Unidas, criada por sua iniciativa. Em 1953, foi eleita delegada do Brasil junto à Comissão Interamericana de Mulheres da União Panamericana de Repúblicas (atual Organização dos Estados Americanos). Seu último ato em prol da melhoria da condição feminina foi em 1975, quando a ONU estabeleceu esse ano como o Ano Internacional da Mulher – resultado das pressões do movimento feminista internacional. Mesmo doente, ela aceitou o convite do governo brasileiro para integrar a delegação do país no primeiro Congresso Internacional da Mulher, realizado na capital do México.

Bertha também foi reconhecida internacionalmente por sua contribuição na pesquisa zoológica, especificamente de espécies anfíbias brasileiras. Dentre os seus escritos estão os Estudos sobre a biologia floral da Mangífera Índica L., Wildlife in Brazil, A nacionalidade da mulher casada, Homenagem das senhoras brasileiras à ilustre presidente da União Interamericana de Mulheres e Estatuto da Mulher. Foi aposentada compulsoriamente em 1964, após 46 anos de trabalho como docente e pesquisadora do Museu Nacional, e conquistou o título de professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1965.

Em 16 setembro de 1976, a cientista e diplomata brasileira faleceu no Rio de Janeiro, aos 82 anos.

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Seu arquivo pessoal, atualmente, está custodiado pela Seção de Memória e Arquivo do Museu Nacional e encontra-se em processo de organização e descrição, pelo Museu e a Casa de Oswaldo Cruz / Fundação Oswaldo Cruz. Existe também o Museu Virtual Bertha Lutz, desenvolvido pela Universidade de Brasília com o apoio do CNPq. O site reúne alguns documentos pessoais de Bertha, imagens do jornal Correio da Manhã e do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, boletins da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, entre outros arquivos.

Em homenagem e reconhecimento ao trabalho diplomático fundamental de Bertha Lutz, a turma 2015-2017 do Curso de Formação do Instituto Rio Branco a escolheu como patronesse na ocasião de sua formatura, em abril deste ano. Durante o discurso de orador, o Terceiro Secretário João Soares Viana Neto proferiu belas palavras em memória da grande ativista brasileira:

“Bertha Lutz soube ocupar espaços e trazer o novo. Filha do século XIX, ajudou a modelar o século XX. Bióloga, fez-se jurista. Quando a mulher casada era relativamente incapaz para os atos da vida civil, foi deputada. Quando os vencedores da Segunda Guerra reuniram-se em São Francisco para desenhar o futuro, fez-se diplomata, representou o Brasil numa conferência na qual 97% dos delegados eram homens e foi a responsável pela inclusão da igualdade de direitos entre homens e mulheres no preâmbulo da Carta da ONU.”

 

FONTES:

SCHUMAHER, Schuma; BRAZIL, Érico Vital. Dicionário Mulheres do Brasil. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2000.

MIRANDA, Guilherme Gantois de. Berta Lutz: cientista e feminista em luta pela emancipação da mulher. Seminário Internacional Fazendo Gênero. Florianópolis, 2006.

www.itamaraty.gov.br/pt-BR/plano-nacional-de-acao-sobre-mulheres-paz-e-seguranca/14884-bertha-lutz

www12.senado.leg.br/noticias/entenda-o-assunto/bertha-lutz

cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/biografias/berta_lutz

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